HABEAS CORPUS

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Desde o primeiro semestre da faculdade, diziam que Direito era um curso para os fortes. Não pelos textos longos ou pelo latim impregnando cada aula, mas pelo peso que as palavras adquiriam. No começo, eu achava que era só conversa de veterano querendo assustar calouro, mas agora… agora eu sei que era verdade.

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Tudo começou com o processo penal. Era só mais uma matéria, uma dentre tantas outras. Mas a análise de casos reais trouxe algo que eu não esperava: pesadelos. Não os pesadelos clássicos, cheios de monstros ou perseguições. Eram sonhos vívidos, nos quais eu estava sentado na cadeira do réu. O juiz, sempre sem rosto, lia sentenças que ecoavam na minha cabeça mesmo depois de acordar. “Culpado”. “Culpado”. Sempre culpado.

O problema não era o sono ruim. A faculdade já fazia questão de cuidar disso com provas, prazos e aquele maldito medo da OAB. Era outra coisa. Começou pequeno, como uma sombra no canto do olho. Uma presença que eu sentia durante as leituras intermináveis de jurisprudências. Parecia rir quando eu errava ao recitar um artigo do Código Penal.

Um dia, voltando tarde da aula de Direito Constitucional, fui estudar para a prova. Tinha acabado de ler um trecho sobre controle de constitucionalidade, quando ouvi um som. Era um sussurro, vindo das páginas. Não dava para entender as palavras, mas era impossível ignorá-lo. Fechei o livro e fui dormir.

Naquela noite, sonhei com a sala de aula, mas estava diferente. O quadro estava apagado, e os colegas, imóveis. A professora de Penal estava no fundo, apontando para mim. “Você sabe o que fez, não sabe?” Eu não sabia. Mas ela repetia, como uma sentença: “Nemo tenetur se detegere.” Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Era uma frase que eu decorava, mas no sonho parecia um veredito.

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Acordei no meio da madrugada, com o peito apertado e uma dor de cabeça latejante. Minha mesa estava como eu tinha deixado: o Vade Mecum aberto na página de Crimes Contra a Pessoa. Mas havia algo que não estava antes. Escrito a lápis, na margem, estava:

“Actus reus. A ação está feita.”

Eu não escrevi aquilo.

Depois disso, as coisas pioraram. As sombras não eram mais só no canto dos olhos. Elas estavam ao meu lado. Pareciam me seguir nos corredores da faculdade, sentar-se na última fileira durante as provas.

Foi durante um seminário sobre teoria geral do processo que aconteceu o pior. Estávamos discutindo precedentes, e eu senti como se a sala fosse se fechar em mim. O professor chamou meu nome, mas eu não conseguia falar. Todos os rostos se voltaram, mas não eram os mesmos rostos dos meus colegas. Eles tinham buracos no lugar dos olhos. E no fundo desses buracos, eu me vi. Eu, sentado no banco dos réus.

“Você nunca vai ar na OAB”,

alguém sussurrou, mas ninguém tinha aberto a boca.

Naquela noite, me tranquei no quarto e queimei todas as anotações do semestre. O Vade Mecum foi o último a ir. Mas antes de o fogo consumi-lo, percebi algo que nunca tinha visto. Na contracapa, estava escrito o meu nome, seguido por uma data. Não era minha caligrafia.

Era a data em que eu comecei a faculdade.

E logo abaixo, uma sentença que ecoa até hoje em minha mente:

“Lex semper vigilat. A lei nunca dorme.”

Eu também não.

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